segunda-feira, 2 de setembro de 2024

preto, pobre e sem perspectiva

Sou filho de um pai conhecido por todos como negão. Nunca vi isso como demérito e nunca, por momento algum, vi isso com um ar jocoso.
Mas teve uma vez que fomos em Fortaleza comprar um óculos pra mim. Fomos de ônibus, andamos de coletivo e fomos até o centro da capital. Chegando lá na ótica, meu pai pediu pra ir ao banheiro e me levou junto. No banheiro, eu e ele, tirou a calça e trazia o dinheiro dentro da cueca. Pra mim, aquilo era, no mínimo, estranho mas continuamos a compra, agora, claro, fora do banheiro.
Ele pagou e vinhemos pra rodoviária. Eu achava muito divertido esse tipo de viagem, pois meu pai era fumante e fumar passou a seu proibido dentro do ônibus. Ele ficava louco! E não se aguentou e foi ao banheiro fumar. Vocês não imaginam o que era isso! Quando ele abriu a porta, depois de fumar, o ônibus era só fumaça e cheiro de cigarro. Ele, nem aí pra nada, sentou e dormiu o resto da viagem.
Lembro que pouca gente falou algo, mas uma mulher ao lado ficou resmungando e ouvi ela dizer para quem estava com ela: tinha que ser preto. Se papai ouviu, fez de conta que não é continuou dormindo...e eu com vergonha, mas não pela ofensa, mas pelo senso que meu pai sempre me ensinou: de nunca fazer algo proibido.
Hoje, agora, sentado na calçada que ele tanto sentou, que tantos o viram ali como se fizesse parte da paisagem, passaram 4 pessoas, 3 adultos e uma criança.
Todos negros. Mas o olhar da criança me tocou de uma forma indescritível.
Minha filha estava comigo, mas ela não conhece aquele olhar. Eu sim! É o olhar de uma mãe jovem que pouco tem para dar. A mãe muito magra e preta e o filho com aquele olhar de necessidade. Talvez fome, mas certamente, um olhar de quem terá poucas chances de ter sequer um pai...
Isso faz toda diferença. Ter um pai, independente dele ser negro ou branco, mas ter um bom pai, inteligente, sensato e diligente, é algo que poucos tem hoje em dia.
Eu estou a anos luz de distância do pai que tive, mas não por ele ter sido a melhor pessoa do mundo, pelo contrário, meu pai era cheio de imperfeições, bruto, mas jamais ignorante. Era uma pessoa admirada por todos e acredite, já foi insultado por alguns, mas nunca na presença dele, mas na minha presença e certamente por ser negro. Mas isso é outra história...
Ser pai é ser homem. Meu pai era um homem de fé franciscana. Uma pessoa quase inabalável. Nem quando jazia no leito de morte, derramou uma lágrima sequer. Dizia ele: nunca troquei uma cerveja por uma mulher... mas eu sei que ele bebeu muitas...
Deus me presenteou em ter o pai que tive,  que jamais me deixou com aquele olhar daquela criança preta, pobre e sem perspectiva.
Eis o mundo no qual fazemos de conta que não existe. Onde alguns vivem e tantos outros sobrevivem, sendo estes ignorados e marcados para morrer como indigentes numa sociedade cada vez mais rica de teoria na terra e miseráveis num céu que jamais viverão.
Meu dia hoje será com aquele olhar, daquela criança sem perspectiva. O que posso fazer? Não sei, sinceramente. 

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