Como meu avô paterno, Carlos Nogueira de Milão, morreu quando eu tinha pouco mais de 6 meses, coube ao cabo Edi ser a imagem de um avô. E assim vamos nós...
Lembrar de coisas boas,
saudosismo, é como sentar a beira da estrada da vida e olhar em perspectiva.
Claro que muitas histórias eu ouvi; coisas que iam e vinham na minha
imaginação; coisas tipo fazer mel de rapadura pra sustentar uma família com 10
filhos, ou passar longos anos com apenas 3 cartuchos de 7.62mm quando era
“delegado” na várzea da onça... mas gosto, não só de sentar à beira da estrada,
mas ir e vir com os carros que passam e sentir o que eles dizem.
Certa vez, meu avô materno,
cabo Edi, precisava ir na maternidade aqui de Quixadá. Aparentemente, não havia
quem fosse com ele e eu me dispus a ir. Ele de poucas palavras, mas de passos
rápidos, saímos rumo a maternidade. Não perguntei o que ele ia fazer lá, mas
certamente não me importaria, pois uma viagem dessas era ir e voltar sem ter
tempo pra pensar.
Num determinado ponto da ida,
notei que tanto eu quanto ele nos alternávamos do lado direito da calçada; era
como uma corrida de carros, onde estar do lado de dentro da curva faria toda a
diferença. Vi que ele não fazia qualquer esforço pra andar mais rápido que,
tanto que eu disse a ele: “meu vô, leve a mal não, mas vamos mais devagar”.
Acho que ele pensou que eu
havia dito isso por causa da idade dele, que certamente já beirava os 70 anos
ou mais; porém, como sempre fazia, ele se fazia de doido pra melhor passar e
continuamos rápido.
Eu era novo, não tinha 30
anos, mas estava penando para acompanhar o ritmo! Ele sempre fazia uma
caminhada toda manhã, cedo, madrugada e eu, sei lá o que fazia, mas com toda
certeza eu teria muito, e tenho, que me esforçar pra acompanha-lo, tanto na
idade como na vida.
Mas continuava a troca de
lados na calçada, mas sempre era a disputa pra quem ficava do lado direito.
Numa certa altura da viagem, disse a ele: “meu vô, me diga uma coisa, porque é
que você só anda desse lado da calçada?” A princípio, acho que ele, mais uma
vez, se fez de doido e só andou...e agora, ainda mais rápido.
Caba do sertão, ligeiro, não
tem tempo pra enxugar o suor nem dar conversa a gente besta; nesse caso, com
toda certeza, besta era eu. Ele lidou com gente ruim; contava que certa vez,
prendeu um meliante na várzea da onça e trouxe o caba amarrado pelas mãos, até
a cidade. Trouxe, literalmente, quase arrastado. Ele veio de cavalo e o bandido
de pé. Imagine isso nos tempos de hoje...
A viagem continuou e continuou
e chegamos novamente em casa. Dom lucas, 251, campo velho. Eu estava suado
demais para perguntar mais alguma coisa. Estava cansado demais! Mas nunca
deixei de me perguntar, pois ele nunca me respondeu: por que o senhor só anda
do lado direito da calçada?
Noutra feita, saia eu de casa
dizendo a minha mãe: vou lá no vô. Esse dia foi épico! Eu vi o que não vi!
Atenção, só sou responsável pelo que digo, mas não pelo que você entende ou
acredita.
Seria apenas mais uma das
centenas de visitas que eu fazia... quando cheguei na esquina, da famosa
zeneide, lá estava ele na janela. Até aí tudo normal, pois eu fiz esse trajeto
centenas de vezes.
Já pisando na calçada, fui
longo pedindo a bença; ouvi o “deus abençoe” e não vi mais nada. Quando cruzei
a porta, ele, que estava na janela, não estava mais lá! Parecia que eu havia
cruzado um portal! Eu olhei, andei mais uns passos e ouvi uma voz atrás de mim,
na janela, dizendo: não me viu né?
Fiquei, como ainda até hoje
estou, sem entender. Eu cheguei e ele estava na janela, quando passei pela
porta ele não estava mais lá! Eu conto e ninguém acredita: meu vô ficava
invisível! E ele ficou.
Por vezes me pergunto se eu
mentiria sobre alguém que já faleceu. Acredito que não. Mas de qualquer forma,
foi o que não vi, literalmente, o que aconteceu. E ele ainda se regozijou,
dizendo: não me viu, né?
Não mesmo.
Mas ele explicou que era uma
oração que ele fazia, mas que demandava muita energia ou coisa do tipo e que
não era algo que sempre fazia. Aparentemente, era algum tipo de poder místico
ou sei lá o quê; de qualquer forma, sei o que não vi.
Poderia dizer mil outras
coisas; poderia falar da vez que passou um homem vendendo rede e ele fez o
homem mostrar umas 10 redes e no final disse que não dormia de rede porque
tinha diabetes. Eu olhei assim e fiquei sem entender. Mais ainda ficou sem
entender o vendedor de rede. Que tinha a ver diabetes com dormir de rede?
Falando em rede, ele me disse
e carrego comigo até hoje essas palavras: meu neto, se você ficar dentro duma
rede, o máximo que pode acontecer é o punho quebrar e você cair no chão...
muita verdade nessa frase.
Leitor da bíblia, pai, humano,
fraco e forte, tudo isso foi meu avô. Costumo pensar que não existe honra nesse
mundo que vivemos, mas existe história e essa ninguém pode nos tirar. Aprendi
muito naquela janela, desde o que fazer ao que não fazer, onde via idas e
vindas, boas ou ruins, de frente ao cabaré ou de costas para a casa, dizia-nos
ele o que a vida não é, pois o que ela é, todos nós sabemos.
A vida é, nas palavras dele,
tudo aquilo que fazemos pelo lado direito da calçada: é o lugar mais seguro
para se andar; e tudo isso sem muitos motivos, apenas é o que é.
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